Êxodo urbano: a saga de uma família que largou a cidade e foi viver no campo
Alexander
Van Parys conta o porquê da escolha e como fez para construir seu sítio na
Serra da Mantiqueira
Relatos, Melhor do PdH, Viagens e aventuras
Quando nosso quarto se encheu de
fumaça de caminhão no meio da madrugada, me levantei do tatame, peguei Serena –
minha primogênita de três meses – no colo, fui para a sala e pensei: preciso
sair daqui.
O sonho de viver no campo, colocar em
prática os conhecimentos adquiridos na faculdade de Agronomia e plantar meus
alimentos, plantar árvores, ter uma vida ao ar livre e em contato com a
natureza já existia há algum tempo. Mas a roda-viva da vida urbana moderna, a
inércia e o medo do desconhecido me impediam de dar o passo fundamental da
mudança. Até essa fatídica madrugada nos primeiros dias do ano de 2006.
A ideia idílica da vida no campo
sempre fora um sonho compartilhado com Laura, minha companheira de vida e
profissão, que alguns anos antes completara sua dissertação de conclusão de
curso relatando sua experiência de cultivo de arroz em uma comunidade no
interior de Goiás.
O palco para a experiência mais
intensa, desafiadora, gratificante e enriquecedora de nossas vidas – um pequeno pedaço de terra com pasto, uma área de floresta, nascentes,
rio e nenhuma infraestrutura encravado no coração da Serra da Mantiqueira –
foi presente de casamento de minha mãe três anos antes.
Um sonho de terra e a questão
do Sol
Sair em expedição com o objetivo de
comprar a terra onde desejávamos estabelecer um projeto de vida foi um processo
importante e interessantíssimo. Com uma infinidade de possibilidades nas mãos –
podíamos escolher qualquer lugar, já que nossas famílias estão espalhadas pelos
quatro cantos do Planeta – a quantidade de opções muitas vezes era um problema.
“Onde viver?” foi a pergunta chave que nos estimulou a pensar no futuro e
imaginar a vida que gostaríamos de ter. Como ambos continuaríamos viajando de
avião por um tempo em função dos trabalhos que desempenhávamos, a proximidade
com um aeroporto era um fator importante. Pela natureza de nosso projeto de
vida, também era importante que a região escolhida tivesse um ambiente propício
para a agricultura familiar e artesanal, pequenos empreendimentos com
atividades muito variadas – como a produção de frutas de clima temperado,
queijos especiais, oliveiras e vinhos (todas relacionadas de alguma forma ao
turismo).
Além de particularidades econômicas
na região candidata, buscávamos um terreno com características físicas,
geográficas, de solo e clima bastante específicas. Um clima ameno, com verões
frescos e inverno frio era o topo da lista – tanto para conforto térmico (me
dou muito mal com calor) quanto para a oportunidade de cultivar plantas
especiais e trabalhar com nichos de mercado específicos. Água em abundância era
o segundo item da lista e, se pudéssemos ter nascentes em pontos altos do
terreno para que a água pudesse ser aproveitada apenas com a força da gravidade,
melhor ainda. Buscávamos ainda uma região montanhosa: como esse tipo de
topografia é indesejável para agricultura industrial, as condições geográficas
seriam um ótimo filtro para selecionar nossos vizinhos. Por esse mesmo motivo,
o preço da terra também seria mais baixo.
O entendimento da interação entre o
terreno e o astro-rei era outra questão imprescindível: o Sol é a principal
“matéria prima” para a produção de plantas e fonte de energia renovável
necessária para um projeto de habitação. Com exposição em excesso, as plantas
morreriam secas e a moradia precisaria de sistemas artificiais de
arrefecimento. Já a pouca exposição limitaria o crescimento das plantas e
demandaria uso de energia extra (lenha, eletricidade, gás) para aquecimento da
casa.
Aprendemos que Leste é a direção onde
o Sol nasce todas as manhãs, que ele supostamente chega no topo ao meio dia e
se põe no lado Oeste. Mas há uma variável importante: dias e noites com
exatamente o mesmo tempo de duração ao longo de todo o ano só acontecem na
linha do Equador – que corta a Terra na horizontal perfeitamente ao meio. Vamos
fazer um exercício mental: imagine que estamos no dia 22 de Dezembro, solstício
de verão no Hemisfério Sul e de inverno no Hemisfério Norte, ao meio dia. Temos
uma pessoa exatamente na linha do Equador, uma em Nova York e outra no Rio de
Janeiro, todas olhando para o Norte, com os braços abertos. Seus braços
direitos apontam para o Leste; os esquerdos, para Oeste.
Para a pessoa no Equador, o Sol bate
exatamente no topo de sua cabeça, o dia dura 12 horas e a noite também. Sua sombra,
projetada no chão, é minúscula, arredondada, bem em volta de seus pés. Para a
pessoa em Nova York, o Sol bate abaixo da nuca, o dia dura 9 horas e 15
minutos, a noite dura 14 horas e 45 minutos e está muito frio. É o início do
Inverno, e sua sombra está projetada no chão está bem à sua frente. Para a
pessoa no Rio de Janeiro, o Sol bate no rosto, o dia dura 13 horas e 33
minutos, a noite dura 10 horas e 27 minutos e está muito calor. Sua sombra está
projetada às costas e, se ela permanecer ali por muito tempo, sentirá sede. Em
caso de desconforto por frio, calor ou luz direta nos olhos, uma pessoa
simplesmente se desloca para outra direção e localidade. Casas, plantas e
estradas não. Uma vez que seu lugar foi definido, elas ficam eternamente
fadadas à exposição aos elementos.
Já que nós habitaríamos um clima mais
frio, era extremamente desejável encontrar um terreno com a face voltada para o
Norte. Como no caso da pessoa no Rio de Janeiro, eu teria bastante exposição
solar para a produção de plantas (a face Norte é desejável desde que se tenha
água em abundância), aquecimento da casa e geração de energia. Para minimizar o
calor do verão com tanta exposição solar, poderíamos plantar árvores
caducifólias, que perdem as folhas no inverno. No verão, suas sombras se
projetariam sobre os cômodos. No inverno, elas deixariam a luz do Sol passar
para aquecer as paredes e pisos.
Mário, o Justo
Com a lista de atributos desejáveis
na mão e a sugestão de uma amiga para conhecer Gonçalves (MG), saímos de férias
em direção à Serra da Mantiqueira no Inverno de 2004. Me apaixonei pelo
primeiro sítio que visitei com um corretor imobiliário, em Santo Antônio do
Pinhal. Era perfeito e cumpria todos os requisitos da minha lista de
qualidades, com exceção de uma: o preço. Custava o dobro do que podíamos pagar.
Depois desse sítio conhecemos mais de 30 áreas diferentes, mas nenhuma delas
fez nossos olhos brilhar. Voltamos para casa um pouco frustrados e Laura voltou
ao trabalho, enquanto eu decidi voltar à Serra e só retornar com alguma
definição. Parei em todas as imobiliárias e vi todo tipo de terra com os
corretores, mas nenhuma delas era apropriada para receber nosso sonho.
Essa situação começou a mudar no dia
em que conheci o Mário “Justo”, um cara grande, de chapéu australiano e bigode
farto cuja imobiliária ficava na garagem da casa em que morava. Ele me
perguntou do que eu precisava e eu recitei a descrição da minha terra ideal,
que a essa altura já estava na ponta da língua. Ao final, Mário olhou para mim
e disse:
– Tenho a terra perfeita para você.
10 alqueires, no Rio Preto, em Santo Antônio do Pinhal.
Era a primeira fazendinha, pela qual
havia me apaixonado. Comentei com Mário que já conhecia essa área mas não tinha
dinheiro suficiente para comprá-la.
– Quanto você paga?
Fiquei sem graça, mas aquela figura
cativante me deixou suficientemente à vontade para declamar um valor. Na mesma
hora ele telefonou para a proprietária, explicou a situação e fez a oferta.
Obviamente, ela não aceitou. Seis meses depois, após muita insistência,
conversa, negociação e choradeira, ela cedeu. A cena do Mário, aquele homem
enorme, me abraçando aos prantos é inesquecível.
– Essa terra era sua, queria muito
que vocês fechassem o negócio.
Foi então que entendi por que o
apelido se transformou em sobrenome.
Do sonho à prática de uma
vida no campo
Terra comprada, conta “rapada”. Não
sobrou um tostão sequer para fincar um mourão de cerca. Assim, mesmo com o
terreno comprado, ainda ficamos três anos morando na casinha na periferia de
Piracicaba. Foi preciso uma madrugada com o quarto cheio de fumaça e quadros
caindo da parede com a vibração das esteiras dos tratores de meu vizinho para
adquirir coragem e fazer a mudança – do jeito que fosse possível, com os
recursos que estivessem disponíveis.
Não dava mais para esperar a ilusão
da situação ideal. Como começar?
Precisávamos construir estrada, casa,
instalar energia elétrica, sistemas de água e esgoto e, ao mesmo tempo,
trabalhar e gerar receita para financiar o sonho que parecia tão distante. Em
meio a todos esses devaneios, depois da noite mal dormida, Laura – que sempre
fora a parte sensata e pé no chão do casal – disparou:
- Vamos passar um mês lá e ver como
é.
Nunca mais voltamos.
Transporte do trailer.
A edícula no sítio do amigo que
supostamente nos abrigaria por um mês nos acolheu por nove, em troca de alguns
trabalhos de web design e da ajuda para montar um café. Depois de férias e
licença maternidade vencidas, foi natural pedir demissão do trabalho. O FGTS
financiou as primeiras obras e, enquanto Laura cuidava do bebê, eu
intensifiquei minhas viagens pelo interior do Brasil fazendo auditorias para
certificação socioambiental como consultor autônomo.
Hora de colocar as mãos à
obra
O propósito de criar um modo de vida
simples, baseado no trabalho pessoal, e restaurar as características naturais
de uma terra degradada pela agricultura mal feita era e continua sendo nossa
missão. Quantas noites antes de dormir passamos discutindo, desenhando,
sonhando e pensando nas melhores formas de habitar um lugar com técnicas de
agroecologia, tendo em mente o intuito de fazer de nossa presença uma força
enriquecedora da diversidade biológica e da vida de forma geral.
Escolher o lugar da casa é tarefa das
mais importantes quando a eficiência energética e a proteção das intempéries
são itens prioritários no projeto. Para planejar e realizar um projeto de
design ecológico da paisagem, o passo fundamental é observar.
É preciso conhecer o local de
implantação do projeto no verão para observar quais são as áreas mais
ensolaradas e onde estão as sombras; nas chuvas mais intensas, é importante
descobrir como a água escorre pelo terreno e onde se acumula. Quais são as partes
mais úmidas e as mais secas? Também é preciso vivenciar o inverno. Na
Mantiqueira, a 1.200 metros de altitude, o inverno muitas vezes tem
temperaturas próximas do 00 C e a água congela nas tubulações (um grande
problema pois, como o gelo ocupa um volume maior do que a água líquida, os
canos se rompem). Onde fazer a horta? Onde plantar milho e feijão? Como gerar
receita com o trabalho local?
Afim de buscar respostas para todas
essas perguntas – e já que os recursos para construir uma casa não existiam – decidimos
morar em um trailer por tempo indeterminado e observar de perto todas as
dinâmicas do lugar. Quem já viajou ou acampou de trailer sabe: aquele caixotão
com rodas é uma verdadeira estufa quando toma sol. Na chuva, não demora muito
antes de começar a apresentar deterioração e vazamentos. Precisávamos de um
“estacionamento”, relativamente protegido de sol e chuva (foi a primeira obra,
que hoje chamamos de ranchão).
Detalhe da construção do ranchão.
Se morar em um trailer já é um
desafio, agora imagine fazê-lo com uma criança de um ano e a esposa grávida.
Nossos amigos viam nosso Turiscar Diamante, um dos maiores modelos de
trailer disponíveis no Brasil, e comentavam: “Nossa, que trailer enorme!”. Eu
sempre respondia que era grande para um trailer e pequeno para uma casa.
São sete metros de comprimento. Na
extremidade dianteira há um quarto de casal, no centro tem o banheiro e uma
beliche e, na extremidade traseira, tem a cozinha (com geladeira e fogão) e a
salinha de jantar que também se transforma em cama de casal. Fizemos uma
pequena adaptação na cama de baixo do beliche, transformando-a em armários. De
acordo com nosso plano a cama superior seria o quartinho da Serena, e nós
dormiríamos no quarto. Obviamente, não funcionou: com um ano de idade, Serena
já batia a cabeça no teto se sentasse na cama. Nossa filha foi dormir na cama
de casal e, como Laura tinha nossa filha do meio, Gaia, no barrigão, elas já
ocupavam todo o espaço do quarto. Fui naturalmente deslocado para a sala que se
transformava em cama (não me recordo as dimensões exatas da pequena porta do
banheiro, mas me lembro bem que, no auge da gravidez, Laura tinha que entrar
literalmente “de ré”).
Vivemos no Turiscar por dois anos e,
em boa parte desse tempo, eu comia, dormia e trabalhava exatamente no mesmo
lugar. A salinha servia de mesa para o café da manhã e para almoçar e, logo
após o almoço, eu tirava a louça e a substituía pelo modem e pelo laptop – a
configuração escritório. À noite o escritório dava lugar à sala de jantar, que
em seguida se transformava em cama – essa dinâmica se repetia todos os dias até
que construí um escritório no ranchão.
Vista da "sala de jantar" do trailer, que também funcionava como quarto e escritório.
Abaixo, reuni alguns dos principais
passos e tarefas que ocuparam esses nossos primeiros momentos no Sítio Gralha Azul. As dicas podem ser úteis para quem
também pensa em deixar a cidade para trás:
- Para que fosse possível enxergar a topografia, caminhar e fazer um
pequeno trecho de estrada até o platô onde seria feito o abrigo para o
trailer, a primeira intervenção foi a roçada do terreno. Consegui
emprestado com o tio de um amigo um nível óptico da Kern da década de 60
ou 70 lindo, com tripé de madeira e uma caixinha metálica parecida com uma
marmita (tenho adoração por ferramentas).
- Depois que definimos um ponto de entrada e um traçado para a
primeira estrada (só assim seria possível receber materiais de construção
na obra), desenhamos e projetamos o ranchão, afim de definir as dimensões
do platô que abrigaria a construção. Com o projeto do ranchão em mãos,
encomendei a madeira. Assim, enquanto o platô era trabalhado, fui
comprando e juntando os materiais para a construção. Essa logística é
muito importante para que a obra aconteça de forma ininterrupta e o
pessoal não fique esperando por material para poder trabalhar.
- Queria uma estrada com declive bem leve, suficiente para que a água
da chuva escorresse a baixa velocidade, sem criar poças. Contratamos o
“Paraíba”, à época dono da única retroescavadeira das redondezas, para
executar o serviço. Uma retroescavadeira comum pesa em torno de sete
toneladas, e qualquer deslize com uma máquina desse porte causa danos de
difícil reparação. A retro do Paraíba era tosca: velha, com pouca
manutenção e pneus carecas. Quanto maior a impulsividade do operador,
maior o risco; e geralmente operadores de retro são caras bem impulsivos.
Um homem montado em uma máquina desse porte precisa estar com a cabeça e o
ego no lugar para realizar apenas o necessário, sem exageros. Lição
aprendida na prática.
- Todo cuidado foi tomado na demarcação do perímetro do platô no
terreno. Medidas foram realizadas no mínimo duas vezes (seguindo um
princípio que aprendi cedo - meça duas vezes, corte uma), e os pontos de
corte com a retroescavadeira foram marcados com estacas
de bambu altas, para que do posto de trabalho da máquina o
operador pudesse visualizar onde trabalhar, sem dificuldades. Eu tinha por
princípio estar sempre presente na obra, mas como nem tudo acontece dentro
dos planos; fui convidado para um trabalho de campo em Pernambuco. Não
estava em posição de negar trabalho e fui. Erro enorme. Por razões
inexplicáveis, o Paraíba cortou três metros a mais da face Sul do platô, e
foi necessário refazer o projeto e comprar mais materiais. O alarme da
conta bancária no vermelho não parava de tocar.
- O ranchão é uma construção bem particular: feito em estrutura de
eucalipto roliço tratado, possui um telhado de grama que funciona como
mirante e tem uma eficiência térmica absurda. É muito fresco no verão e,
no inverno, isola bem o calor dentro da edificação. Por ser o primeiro do
tipo na região, fiquei conhecido como o “moço da cidade que planta grama
no telhado”. A construção foi uma odisseia. A manta de vinil que
impermeabiliza o telhado e pesa meia tonelada foi colocada lá em cima com
uma junta de bois. Para economizar no transporte fui pessoalmente buscar a
manta na fábrica em Embu das Artes, distante cerca de 215 Km, com minha
Land Rover 130 bicombustível (movida a Diesel e óleo vegetal usado).
Quando o operador de empilhadeira soltou o pacote na caçamba de meio metro
de altura e a Land balançou como uma gangorra, percebi por que só haviam
carretas na fila de retirada.
- Enquanto a construção do ranchão começava, a prioridade era fazer o
sistema de água. O sítio tem cinco nascentes que minam água na superfície
do solo, e uma delas fica em um ponto bem elevado do terreno. Chamei um
dos vizinhos, especializado em “furar minas”, e ele realizou o serviço:
identificou o local por onde a água brota no terreno e, com um equipamento
que funciona com um jato dirigido de água, chegou na rocha mãe de onde
essa água sai (com um cano inserido na terra até encostar na rocha mãe, é
possível captar a água mais limpa possível). Feito isso, era necessário
canalizar a água captada até o reservatório. Aqui no Sítio Gralha Azul o
reservatório foi estrategicamente posicionado para ficar 40 metros acima
do que chamamos hoje de centro de serviço (composto pela casa, estufa,
galpão, ranchão). Imagine uma casa com uma torre de 40 metros ao lado e,
no alto dessa torre, uma caixa d’água. Agora imagine a pressão em um
chuveiro lá embaixo. Quando desenhei o sistema buscava criar um jato de
água muito forte que servisse perfeitamente para lavar carros, máquinas
agrícolas e o pátio de trabalho sem a utilização de motores ou energia
elétrica. É energia gratuita da natureza, disponível para quem consegue
enxergar seu potencial.
- A caixa d’água, de 20 mil litros, foi confeccionada localmente
utilizando a técnica do ferrocimento. Grosso modo, faz-se uma
“gaiola” de tela pop, cobre-se essa gaiola por dentro e por fora com uma
tela de viveiro de pintinhos e depois, com a gaiola já no local
definitivo, cobre-se as paredes com uma massa de cimento fina. A
vizinhança toda ajudou a colocar a gaiola lá em cima. Depois, por algumas
semanas, o burro emprestado pelo vizinho transportou areia, pedra e
cimento morro acima para finalizar o tanque.
- O nosso sistema sanitário inicial era o de banheiro seco, baseado
no sistema mais simples propagado por Joseph Jenkins, autor do livro Humanure. Por mais
estranho que pareça (é preciso “dar descarga” com um copo de serragem de
madeira a cada uso), quando bem manejado o sanitário não apresenta odor
algum mesmo dentro de um trailer. O baldinho era esvaziado em um local
preparado especialmente para receber o material e fazer a compostagem
aeróbica, transformando o material em adubo riquíssimo para árvores e
plantas ornamentais.
- No auge da ideologia de salvar o Planeta e ter um modo de vida
sustentável, decidimos não nos conectar na rede elétrica que passava
dentro do sítio e optamos por utilizar apenas energia solar. Começamos o
sistema com dois painéis fotovoltáicos de 120 watts cada um, quatro
baterias estacionárias, um inversor de potência de 1.750 watts (o inversor
transforma a energia 12 volts corrente contínua em 110 volts corrente
alternada) e um bom controlador de carga, que “conversa” com os painéis e
as baterias para enviar a carga necessária.
- Utilizávamos também bastante gás de cozinha: a geladeira, o boiler
de água quente do trailer e o fogão tinham essa fonte de energia. Era um
botijão a cada 10 ou 12 dias, dependendo da época do ano. O aquecedor
tinha uma capacidade de 10 litros, e é claro que, no inverno, a água
quente sempre acabava no auge do ensaboamento. O aviso era o jato de água
gelada que saia de repente. Esse tipo de surpresa e dificuldade serviram
como motores naturais para a evolução da infraestrutura de nosso habitat,
e instalamos um sistema de coletores solares com capacidade de 300 litros
para aquecimento de água. Acrescentamos painéis solares ao sistema de
geração de energia paulatinamente, à medida que a consultoria ganhava
tração e nos dava algum fôlego financeiro.
- Grande parte do tempo estávamos ao ar livre, trabalhando para
implantar os primeiros sistemas agrícolas. Como em uma construção, o
trabalho de restauração do solo e da paisagem também têm uma sequência
lógica de tempo e espaço. Espacialmente falando, é interessante começar a
ocupar o terreno pela porta da casa e expandir o raio de atuação de acordo
com o desenvolvimento dos sistemas de produção. Essa é uma das
principais lições da Permacultura, e pode ser replicada para diversas
esferas da vida. Geralmente nós cuidamos melhor do que está ao alcance dos
olhos e das mãos.
- A horta começou a ser implantada nos arredores do ranchão. Como o
solo era muito ruim, super ácido e compactado (duro), o modo mais
eficiente de começar seria através de canteiros suspensos. Junto com Sr.
Roberto, nosso funcionário aqui desde o início (e vizinho, já que nosso
terreno pertenceu ao pai dele), construí uma série de canteiros
de bambu como se fossem grandes caixotes. Os preenchi com
esterco de gado e palha. Esse material misturado sofre o processo de
compostagem (as bactérias presentes no esterco fresco consomem a palha,
transformando-a em húmus, gerando calor e liberando CO2). O húmus é o
melhor adubo do mundo, e é uma parte maravilhosa do ciclo da vida:
materiais mortos e resíduos animais que em conjunto funcionam como o
elixir de nova vida.
- Nas áreas adjacentes à horta, ao ranchão e ao local onde hoje está
a sede, fizemos uma aração com uma junta de bois. O terreno estava
totalmente ocupado por um capim conhecido como “rabo de burro”. Ele é
alto, muito fibroso e forma belos cachos de sementes na ponta, mas nada
nasce onde ele está. Quando fazemos uma aração ou gradagem, movimentamos a
terra de modo a “desestabilizar” o sistema ali existente. No caso em
questão, era um sistema extremamente simples, com apenas uma planta. Logo
após a movimentação de solo, planta-se um coquetel com a maior diversidade
possível de plantas de diversas famílias, como gramíneas, leguminosas e
outras.
- Cada espécie de planta do coquetel tem uma função específica.
As
leguminosas tem uma habilidade que quase nenhuma outra planta tem: elas
associam-se a um tipo de bactéria (Rhizobacteria) que vive em suas raízes
e possui a habilidade de retirar nitrogênio do ar e tornar esse elemento
disponível para as plantas. O nitrogênio é um dos principais nutrientes
para os seres vivos, e é ele que forma os aminoácidos – tijolos
construtores das proteínas. Sabendo utilizar as plantas certas nos
momentos certos, podemos captar serviços fornecidos pela natureza
utilizando pouca energia, sem gerar resíduos que podem se tornar poluição.
São estratégias desenvolvidas pelo planeta Terra e testadas por seu
departamento de Pesquisa e Desenvolvimento nos últimos 3,5 bilhões de
anos.
Sítio Gralha Azul: 9 anos,
uma casa e três filhas depois
Depois do nascimento de Gaia, ainda
vivemos por um ano no trailer. Embora a infraestrutura no sítio já estivesse um
pouco melhor, o espaço estava limitado demais: vivíamos sob a rígida lei de
“entrou uma coisa, sai outra”.
Nesse período, havíamos dado início à
construção de um pequeno galpão de serviço. Com estrutura de madeira local, o
fechamento das paredes foi todo feito com adobes – tijolos de terra crua –
produzidos localmente. De acordo com cada tipo de solo, utiliza-se uma mistura
com proporções específicas de argila, areia e um pouco de esterco de vaca
fresco (ou uma palha bem fibrosa como arroz e trigo). Uma vez feita a pilha com
os materiais nas medidas corretas, é necessário molhar tudo até formar uma
pasta e pisar bastante para que as o material ganhe “liga”. O próximo passo é
fazer grandes bolas de argila, jogar com força em uma forma e retirar o excesso
de terra que fica na superfície da forma. Quase prontos, os tijolos de adobe
são então desenformados e colocados à sombra para secar.
Passamos alguns meses dançando no
barro até fabricar a quantidade adequada de tijolos. Quando a obra estava pela
metade, recebemos a visita de um grande amigo que bateu os olhos na construção
e falou:
– Por que vocês não se mudam do
trailer para cá?
Foi exatamente o que aconteceu. O que
era para ser um galpão de trabalho virou, depois de algumas adaptações, a casa
onde vivemos até hoje. A mudança para a casa foi um marco importante no
processo de habitação do lugar: tínhamos mais espaço para organizar as coisas e
a vida ficou um pouco mais fácil. A fase 1 de desbravamento do terreno estava
vencida.
Quando as crianças cresceram um
pouco, começaram a frequentar a escola em período integral. O pequeno grupo de
pais e mães tornou-se unido, e nossa vida social se enriqueceu muito: grande
parte das famílias eram recém chegadas de São Paulo ou outras grandes capitais,
também em busca de mais qualidade de vida e melhor educação para os filhos.
Faz 9 anos e três filhas – a
Valentina nasceu em 2012 – que tomei a decisão mais importante de minha vida:
materializar um sonho, hoje chamado Sítio Gralha Azul. A cada novo desafio, algumas sábias
palavras de meu avô repetem-se em minha mente:
“Você está disposto a enfrentar todas as
dificuldades, problemas; você está disposto a sair da zona de conforto, a abrir
mão de luxo e recompensas imediatas para realizar essa empreitada? Então, vá.”
publicado em 28 de Janeiro de 2015,
17:28
Apaixonado pela natureza e pela vida
ao ar livre, é Engenheiro Agrônomo e Agricultor Ecológico. Adora ler, aprender
e empreender. Está no Sítio Gralha Azul, no Twitter e
no LinkedIn.
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